Acervo

"Que os sonhos faça-nos realizar o que a realidade não nos permite sonhar."

Maria Tereza Horta

Os anjos – I

Eles andam no ar
com as suas vestes
longas

as asas frementes
a baterem no tempo

Vêm
da infância
a rasar a memória

a voarem o vento

Ouvia os insectos,
deitada-rente
sobre a terra

e imaginava os anjos
debruçados no espaço
a beberem o sol

Uma por uma as pétalas
Os gomos

as citilantes escamas
mais pequenas

Uma por uma as penas

a formularem a nossa memória
das asas dos anjos

Tem a força estagnada
das paredes
a respirarem através da cal do útero

num arfar
lento
menstruação contida

Os pés vão nus,
a bordejarem o voo

a controlarem o
espaço

lemes do corpo
a fixarem
as asas:

crespas e acesas
nos ombros dos
anjos

São anjos
apenas
com o corpo dos homens

num corpo de mulher

e um ligeiro crepitar
de asas
na altura dos ombros

Tem uma conotação
sexual
de aventura

com a sua vagina
entreaberta
e o seu clitóris tumefacto
e tenso
à ponta dos dedos

Desviar os lábios
dos anjos

mas entreabrir-lhes também
as coxas

os sonhos – a mente
enquanto eles observam

Quando os anjos
flutuam
sobre as tréguas

naquele segundo
em que se ouve bater
o coração das pedras

Uma flor de
amparo,

o apoio de uma
asa
no voo raso às raízes do tempo

Até ao vácuo?

Os anjos são
os olhos
da cidade

Olhos de mulher,
que voa

Tem asas de cristal
e água
os anjos que à flor-do-dia
entornam a madrugada

cintilantes e volácteis

Eles voam com as suas asas
de prazer:

os anjos da fala
– dormindo na saliva da boca

Substituir os peixes alados
por anjos
Com as suas longínquas asas
a afagar os meus ombros

Queria saber
do destino dos anjos

quando voam
no mar
dos nossos olhos

No céu líquido
dos olhos
das mulheres

Diz-me
da poesia

através da palavra
dos anjos...

Aos olhos do tempo
a transgressão
das horas

pelo dentro das nervuras
das asas

pequenos capilares de vento
onde começa a vontade
de voar

num caminhar
sedento

Têm todos os anjos
o vício:

da queda?